Entre os ingredientes deste bolo vendido na porta da estação Artur Alvim, temos a mesquinharia (vide capítulo mesquinharia corporativa), o qual, em determinadas receitas, a dosagem é muito maior, vindo sob a forma de “jogar na cara”. Este termo guarda uma das denominações mais auto-explicativas entre os jargões da língua portuguesa, já que o termo induz alguém acumulando diversos sentimentos mal resolvidos até que seja atingido o cume do senso de injustiça – e então, “joga-se na cara”!
Seria muito mais fácil e menos desgastante emocionalmente se Haroldo, analista de operações, estabelecesse alguns limites ou refletisse melhor se realmente está sendo injustiçado, quando auxilia seus colegas de baias ou, até mesmo, realiza alguma atividade que não sua. A questão é que, primeiramente, Haroldo guarda um sentimento de auto-piedade e injustiça tão dantesco a ponto de já ter desenvolvido uma planilha salva em seu desktop, onde “alimenta” (o termo “alimentar planilhas” será citado na próxima aula de corporatês) tudo que fez “a mais” do que deveria (com informações dispostas em data, favorecidos, descrição e valor emocional – uma espécie de “rate” para cada favor executado).
Obviamente que em todos os setores da vida, uma forma de impor a personalidade é “deixar claro” limites e fazê-lo respeitar quando senti-los ultrapassados. Porém, o termômetro da injustiça de Haroldo vive defasado em 3 graus acima. E para ele não importa o quanto já foi feito a seu favor em outras circunstâncias – não há “rate” negativo na planilha de Haroldo.
Tudo começa quando algo é solicitado a Haroldo além do que é sua obrigação. Cordial e gentilmente, ele recebe muito bem a Mari, esforçando-se, de certa forma, para resolver o problema. Obviamente que, embora tenha havido cordialidade, a pessoa não deixará de estrelar na planilha de Haroldo – e, lógico, a temperatura subirá dois graus na escala Haroldo– diríamos então que subiu 2 graus “haroldos”.
Nada especial: Haroldo apenas ficará um pouco pensativo (significa que durante o seu percurso de volta no meio do agradável trânsito das 18h30 na Marginal Pinheiros, refletirá um pouco sobre os méritos e recompensa de ter feito aquilo). Porém, Mari achou o Haroldo super receptivo e solicito neste primeiro favor, então não hesitará, na próxima semana, em pedir que ele ajude-a novamente na mesma planilha.
Febre instalada! Haroldo se mostrou solicito novamente, porém desta vez, o furacão do sentimento de injustiça saiu do plano da inconsciência. Haroldo atendeu novamente, entretanto desde a hora em que finalizou o trabalho as 16h00 até as 23h00 - pouco antes de dormir - não conseguiu parar de refletir irritadamente sobre o acontecimento.
Trinta e oito graus Haroldo ! No outro dia, ele não conseguia sequer olhar para Mari, no entanto manteve a falsa simpatia, a qual alimentava nela um sentimento de felicidade em trabalhar num local onde as pessoas ajudam e trabalham em grupo. Já em Haroldo, o sentimento era de injustiça e revolta por não ter os “limites individuais” respeitados. De fato, há uma linha muito tênue entre respeitar limites individuais e trabalho mútuo, porém a inconstância do termômetro de Haroldo não o permite definir muito bem esta divisória.
Outra semana, novo reporte da planilha e desta vez foi fatal. Embora Mari tenha sido displicente em ter se acomodado no auxílio de Haroldo, nada justifica a crise de depressão proporcionada em Haroldo. Quarenta graus “haroldos” e ele não agüentou: simplesmente negou o auxílio. Não criou subterfúgios corporativos (na modalidade “estou ocupado no momento”): simplesmente disse: “não vou ajudar”!
Haroldo ficou nervoso, Mari não entendeu nada e a planilha foi entregue errada – então caiu a cobertura e restou só o bolo da porta da estação. Ele alega ter sido sincero em seus sentimentos. E foi! Porém, duvidoso é saber em que estes estão fundados. E ninguém sabe, pois pelo menos, o incômodo jamais havia sido colocado em pauta de forma sutil, quando tudo iniciou.
Alimentou-se planilhas, alimentou-se sentimentos e na hora mais oportuna (ou inoportuna) jogou-se na cara. Pode ser que a displicência do dia-dia corporativo ultrapassou os supostos limites emocionais de Haroldo, mas será que seu pensamento individualista não teria, também, ultrapassado os limites do mutualismo?