sábado, 5 de fevereiro de 2011

A hipócrita primeira pessoa do plural

Eu, tu, ele, nós, vos, eles! É muito peculiar a forma como o mundo corporativo manipula e explora uma questão semântica tão banal quanto à utilização dos pronomes pessoais em favor da manutenção de imagens e máscaras. E tratando-se de teamwork em terras tropicais da América do Sul, o pronome nós é uma instituição no ambiente corporativo local, tanto quanto nas teorias.
Jamais se começa uma exposição verbal formal sem a primeira pessoa do plural, seja ela uma entrevista, uma reunião ou, até mesmo, em uma rápida conversa no café. De fato, seria um hábito saudável, caso a atitude não fosse tão manipulada e distorcida, sempre conforme a legislação de Gerson, vigente neste país desde a mais remota idade.
Fernando do planejamento estratégico, sempre diz que "NÓS estamos envolvidos em um projeto de 10 milhões de dólares". Disse ainda que "NÓS estamos em uma joint-venture com a Beta, na exploração de um mercado gigantesco." Declarou “in off” no happy-hour, que "NÓS estamos nos preparando para adquirir a joãoson&joãoson!!!" Com ar de imponência, ainda diz que "NÓS faturamos 1 bi este trimestre!"
Fico admirado com a nobreza e o senso de coleguismo do colaborador Fernando, assumindo em conjunto as vitórias da Alpha. Sei o quão irrelevante o leitor possa considerar tal fato, bem como o que o mesmo deve pensar a cerca de meus devaneios e minhas implicâncias baratas, entretanto a minha frenética e psicótica perseguição ao corporativo resolveu ser implacável com Fernando.
Percebo que Fernando utiliza sim a terceira pessoa do plural, porém sempre quando sua participação é nula ou tendendo a zero e, simultaneamente, quando verbo + objeto direto seja algo extraordinário e esplendoroso, do tipo “faturamos 1 bi este trimestre”. Provavelmente, sua colaboração no referido faturamento seja menos de 0,001%! Sendo assim neste caso, meus valores, princípios e minha cara que já não é de pau me proibiriam terminantemente de gozar tão descaradamente do mérito.
É possível que os leitores – principalmente os corporativos – estejam estupefatos e revoltados com o meu radicalismo pontiagudo e maldoso, neste momento. Desculpo-me com o leitor corporativo, se isto é como um balde de água fria no refrigério que a suposta participação em um faturamento tão significativo proporciona, uma vez que o fato em si - além de extraordinário – confere um sentido e uma razão para sua vida e existência.
No entanto, não posso perdoar Fernando, uma vez que quando é o principal sujeito na execução de algo fabuloso e extraordinário NÃO utiliza, em hipótese alguma, o pronome NÓS. Sempre menciona que “EU fui responsável pelo projeto x”; “EU consolidei os números em menos de uma semana”, “EU liderei o processo de unificação dos departamentos”, “EU enviei e-mail com cópia para todos os gerentes questionando Mr Homer Simpsons (Homer.simpsons@us.alpha.com) da filial de Dallas (segunda principal da Alpha).”
Perceba que todos estes expedientes não são executados isoladamente e tampouco sem suporte de uma equipe. Tenha certeza de que a execução do projeto x precisou de pelo menos dois estagiários e um analista Junior; A consolidação dos números depende de uma série infindável de reportes interdepartamentais, com muitas pessoas envolvidas, até que o número apareça.
Até mesmo o e-mail para o Homer Simpsons! Fernando é egocêntrico, mas não louco! Certamente, não faria isto a revelia! Provavelmente, havia uma ebulição na filial brasileira contra Mr. Simpsons e um clima favorável para que ele tivesse o respaldo político em questionar alguém da filial de Dallas. Então porque ele não usa o pronome NÓS neste momento, já que contou, em todas ocasiões, com o respaldo de uma equipe? Sinto que o melhor adjetivo não é coleguismo, mas sim, oportunismo! Manipula-se o sujeito de acordo com o fato!
E, então, o perfil de liderança voltado para o teamwork vai por água abaixo. Caso isto ainda não tenha sido assimilado, proponho então uma nova situação. Os verbos+objeto direto de fatos desfavoráveis! Ele jamais se inclui como sujeito, mesmo quando há sua participação direta ou indireta. O pronome NÓS é evitado a qualquer custo. Repare que, segundo Fernando, "O PESSOAL DE SISTEMAS não atualizou as configurações do novo ERP, o que conjuminou nas inconsistências do fechamento!""A EQUIPE DO LACERDA (mesmo departamento do Fernando) não reportou os números três dias antes do deadline, conforme acordado." "CULPA DO FISCAL que sempre enrola com as notas fiscais."
Em casos de insucesso, a fórmula de Fernando é a 3ª pessoa do singular e do plural! Ele jamais está envolvido em algo mal-sucedido! Mesmo quando está! Neste caso, ora omite o fato, ora altera o pronome! Inconsistências no fechamento são responsabilidades dele, pois quem reporta, se responsabiliza pelos números! Não cumprimento de prazo não deixa de ser problema de quem atrasa, mesmo quando há atrasos na cadeia de reportes! A culpa é de NÓS, e não apenas deles!
Sinceramente, não haveria motivos para implicação com os corporativos, se houvesse em todas ocasiões e fatos, espírito de grupo e hombridade coletiva na responsabilização da equipe, tanto nos méritos, quanto nos deméritos, conforme pressupõe as teorias norte-americanas de gestão, os quais de fato são muito efetivas, cabíveis e pertinentes, quando o assunto é formas de se trabalhar em um contexto econômico, corporativo e de mercado cada vez mais dinâmico e competitivo.
Se esquece Fernando, assim como 95% dos corporativos brasileiros que o grande líder tem como principais qualidades a nobreza em assumir derrotas pessoais e o discernimento em conhecer os pontos em que precisa evoluir. Resta dúvida se podemos responsabilizar a cultura corporativa, a qual valoriza ao extremo os sucessos e reprime e condena implacavelmente o insucesso e o fracasso, pressionando os corporativos a assumirem apenas vitórias em seu discurso.
No entanto, algo é inquestionável em qualquer sociedade. Os valores, os princípios e a atitude nobre são as principais bandeiras de luta de um grande homem, mesmo que o uso indevido dos pronomes incomode ou desagrade os ouvidos corporativos de alguém! E então não apenas condeno, mas repudio totalmente Fernando, quando diz estar adquirindo junto com a Alpha a “joãoson&joãoson” ou participando da joint-venture com a Beta. Afinal, se ele exclui totalmente o mérito do grupo quando principal responsável de uma atividade, deve também excluir-se totalmente dos méritos da Alpha, uma vez que sua participação é ínfima.