domingo, 31 de outubro de 2010

PRIMEIRO DIA ("boa sorte neste novo desafio!")

Das inúmeras “poucas e boas” do cotidiano empresarial, se há uma situação pouca, porém muito boa é o primeiro dia de empresa. Se não boa, pelo menos antagônica é. A falta de sintonia de expectativas, motivação e estímulos é exposta, latente e fica muito clara a todos.
Motivação por parte do entrante, dado que teoricamente não se aceita com desmotivação um novo “desafio” (fica prometido um capítulo com o título “desafio”, tamanho a superficialidade corporativa imposta ao termo pelos corporativos da gestão de pessoas). A desmotivação mesmo é sempre exposta na recepção por parte dos novos colegas.
Pode ser que algum anjo caridoso nos leve a pensar conforme almeja as teorias acadêmicas de gestão de empresa, na qual somos um time e o novo colega é um parceiro que veio a contribuir com o grupo (em corporatês business english muito arrogante: join us). Mas após anos de arcabouço corporativo, não sejamos hipócritas ou ingênuos: quando o entrante não é um novo rival, é um novo insignificante!
Alias, o termo insignificante é muito feliz para definir aquele que não é rival em um departamento x de uma multinacional alpha. Embora existam, são sempre muito remotas as possibilidades de sentimento fraterno e cordial. Quando não há repulsa ou indiferença, o gostar em empresa não passa de mera admiração.
E por falar em indiferente, eis que é anunciada a contratação de um futuro adversário, ou melhor colega. Ricardo Rosa - o novo internal control specialist – será o mais novo recém-chegado ao departamento na segunda-feira. Desde o anúncio da vaga até as primeiras movimentações (período o qual você procura o chefinho para perguntá-lo se seria possível indicação de algum contato), os primeiros boatos começam a surgir entre os cortiços corporativos (baias).
Ricardo Rosa é indiferente à Mari, já que ela é da área de endo marketing e há poucas chances de alguma “picuinha” profissional com o novo colega – se bem que o mundo corporativo é mestre em preparar as mais bizarras surpresas. Colegas de anos de encontro em elevadores (daqueles que cumprimenta-se, mas não se sabe quem é) tornam-se, inesperadamente, suas encrencas de rotina corporativa.
Segunda-feira foi o dia da integração; primeiro dia de Ricardo Rosa na Alpha, mas não de convívio com seus futuros colegas. O famoso dia D estava agendado para terça-feira, quando o Sr. Rosa seria formalmente apresentado aos seus colegas de cela e de presídio (de departamento e de empresa). Alias, não há metáfora mais feliz do que presídio, quando se trata de empresas, principalmente as multinacionais.
No entanto, guardemos a analogia para os próximos textos, pois terça-feira chegou e eis que Ricardo Rosa adentra em seu departamento, acompanhado de seu chefinho e padrinho corporativo. São nestes momentos em que o ambiente corporativo se revela um dos mais eficientes laboratório da insanidade mental e das mazelas sociais escancaradas. Vaidade, falsidade, egoísmo e mesquinharias a flor da pele, pois há um entrante (ou jogador ou rival ou inimigo) nos arcabouços já instalados nas baias.
O analista Rosa foi conduzido por Luciana Hauber do RH direto aos braços do seu novo chefinho. A repetida cena do primeiro dia é um tanto quanto bizarra. A menina do RH entregando o debutante aos braços de seu mestre, sempre me faz lembrar aquele momento matrimonial em que o pai da moça a entrega sua filha aos domínios de seu macho e fértil reprodutor.
Embora a pessoa situada mais próxima da entrada do barraco (cela, departamento) é Leandro (o estagiário), ele será o último a ser apresentado. Na nossa analogia presidiária, Leandro é como aquele novato de cela que dorme em pé: sua baia situa-se de frente para a parede e no local de maior trânsito do departamento. Sua relevância é pouca e é improvável que o querido tutor lembrará de apresentá-lo; E, se assim o fizer, é porque contará ainda hoje com o “suporte” do aspirante para auxiliar o entrante no entediante começo, tal como mostrar diretórios, planilhas e outros.
O primeiro a ser apresentado é o casca grossa do barraco: Dr. Fonseca, o diretor. Batendo na porta semi-aberta (corporativos do médio escalão devem parecer acessíveis) , já adentra na sala “Bom dia Dr. Fonseca, este aqui é o Ricardo que trabalhará conosco na área de controles e. . ..”. Dr. Fonseca sequer olhou para a rapaz durante a apresentação, no entanto interrompeu e logo desejou um amargo, venenoso e malvado: “boa sorte, mas boa sorte mesmo . . .você vai precisar de muita boa sorte”. E então o tutor complementa com um malvado bem humorado comentário para prestar simpatia ao diretor: “ . . . isto porque ainda não apresentei o menino para o pessoal de compliance...” e então soltam aquela demoníaca gargalhada, que lembra a bem humorada conversa entre Lúcifer e Demóstenes Junior no oitavo círculo do inferno.
Embora não conheça o contexto em que o comentário foi utilizado, o analista Rosa está, no mínimo, perplexo a respeito do que significará o departamento de compliance da Alpha em sua vida profisonal.
Se a lógica da apresentação é mediante o nível hierárquico, então o próximo a ser introduzido é o Teixeira. O gerente Teixeira se lamenta muito por ser gerente e não ter sala, porém se orgulha pelo fato de sua baia ser afastada dos demais presidiários, o que lhe confere maior status. Ao ver o novato se aproximando com seu tutor, Teixeira promoveu um verdadeiro teatro corporativo, fingindo aquele “tic nervoso” padrão do estar falando no telefone enquanto trabalha e ao mesmo tempo se movimentando de um lado para o outro, parecendo atarefado.
O Teixeira é aquele modelo de falso colega que profere o seu segundo falso discurso-conselho amigo (o primeiro é sempre proferido pelo seu chefinho) logo quando adentra na empresa.
Tutor: “Fala aí Teixeira, como está? Seu time não tem jeito mesmo, perdeu dinovo!”
Teixeira: “mas o seu time vai perder amanhã. . .”
Tutor: “Teixeira, este é o Ricardo e vai trabalhar com a gente nesta parte de controles internos dando suporte direto ao “big boss” (vulgo Dr. Fonseca, o diretor da primeira apresentação – não menos invejoso é o chefinho tutor)”
Teixeira: “Ricardo, estou a 4 anos na Alpha e tenho 15 na área, posso dizer que aqui será um ótimo campo para você se desenvolver. O pessoal de controles é acessível e com certeza vão te ajudar a se adaptar rapidamente. . . e bla bla bla . .e te desejo boa sorte neste novo desafio.”
Em um surto de ingenuidade poderia crer que estes discursos padrões repletos de chavões seriam conselhos amigos, mas prefiro ser realista e continuar chamando isto de "autopromoção". O “sábio e experiente” Teixeira sempre encontra uma forma de se afirmar. Muito patética é a sua micro-estante situada atrás de sua “baia mini-sala” contendo livros de micro-econômia aplicada, gestão de riscos, conceitos de política internacional, sendo que sua função principal é reportar e explicar planilhas consolidadas ao Dr. Fonseca.
Infeliz sofredor aquele que leva a empresa em que trabalha a sério. Como poderia ser levado a sério um sujeito como o Teixeira? E acreditem, o mundo corporativo é uma poderosa máquina capaz de produzir pelo menos 10 teixeiras por segundo. Podemos, quem sabe, desafiar Rousseau se o homem de fato nasce bom, mas a conclusão do filósofo é precisa, assertiva e indubitável: as empresas o corrompem!
Os próximos a serem apresentados são as ralés . . .aquele bando de analistas, assistentes e estagiários arranjados em baias num espaço de 30 m² milimetricamente designado pelo orçamento. Mas como estão trajando sofisticadas vestimentas e não calças beges, sentem-se proprietários supremos do poder e da glória.
Inveja, comentários jocosos, maldizer . . .tudo maquiado com o eterno, famoso e falso “boa sorte” aliado a um não menos dissimulado sorriso. Dissimulado mesmo foi Fernando em seus dizeres, se colocando polidamente a disposição do analista Rosa no que ele precisar. Disse a Ricardo: “qualquer coisa é só chamar”. Porém teve a maldosa coragem de chamar os seis coleguinhas da patota do departamento para o almoço e ignorá-lo descaradamente, sem a menor sensibilidade e senso de coleguismo.
A encenação da secretária Ana é do tipo “falso-emotiva”. Ela não saúda com aperto de mão, mas sim com beijo. Se mostra solicita e atenciosa; pergunta se o pessoal do RH já providenciou VR e vaga no estacionamento; Não espera a resposta: logo apanha o telefone para tirar satisfação junto a Luciana.hauber. Mostra de onde estão, todos os aposentos do departamento.
Os “pseudo-solícitos” são muito engraçados: oferecem ajuda enquanto ningém precisa. Quando de fato alguém carece, ora auxiliam com muito mal-humor ora informa que infelizmente, nada pode ser feito.
Finalmente e de acordo com o previsto, Leandro não foi apresentado, no entanto foi orientado pelo querido chefinho do analista Rosa a contatar o pessoal de T.I, para que sejam providenciados e-mail e acesso à rede. A tia Ana tratou logo de trazer o novo crachá, cartão VR. . .ah o estacionamento. ..nisso, ela diz não poder ajudar (simples mortais raramente dispõem de vaga)!
Rosa foi almoçar com Leandro e passou o resto do dia isolado, lendo e analisando aquelas aostilas contendo métodos e procedimentos, após inúmeros “boa sorte neste novo desafio”. Quando um novo colega deseja isto no primeiro dia, sempre desconfie se precisará de sorte para desempenhar as atividades ou para lidar com os transtornos que ele mesmo lhe causará.